Ohrwurm [IV]

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Ratinho por uns tempos [II]

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A sala dos Märkl é um museu durante quase 6 meses, desde a época de reprodução das suas 120 cabras Saanen até à quebra no leite que acompanha a chegada do tempo frio. No Verão só tenho alguns minutos para passar por este local de hibernação à hora do almoço e ler os títulos dos livros porque para o sortudo do aprendiz voluntário o dia começa às 7 e acaba às 11 e meia da noite. Para os dois ocupantes permanentes da quinta começa às 5 e acaba perto da 1 da manhã. O voluntário tentou durante dois dias acompanhar o ritmo dos anfitriões e fracassou espectacularmente, parando para evitar que, distraído pelo cansaço ficasse sem um dedo ou, pior, uma das cabras dos anfitriões.

Como todos os trabalhos são duros e rápidos não há espaço para pensar no cansaço ou ir à boleia do seu atrito mental. Estar concentrado evita acidentes por isso nem a enorme monotonia das funções é capaz de quebrar um ritmo mais próximo de um trabalho fabril do que da expectativa bucólica.
Emerge logo um ritmo de tarefas repetidas todos dias: ordenhar; alimentar porcos e galinhas; fazer pequeno-almoço; tratar da horta; tratar do pomar; ordenhar novamente: levar cabras ao pasto; alimentar animais; fazer queijo; lavar queijaria e sala de ordenha; cortar lenha; cozinhar; lavar louça e casa.
A estas somam-se as tarefas alternadas a cada dois dias: roçar mato para cama de gado; fazer a cama do gado; ceifar milho para gado; fazer manteiga ou requeijão; matar animal para próximas refeições, etc, etc.
Quando estive na quinta não realizei nenhuma das tarefas que acompanham o fim dos ciclos produtivos ou estações: matança dos porcos; fazer vinho; salgar carne; ir às compras (uma vez por ano); fazer conservas, entre muitas outras que ficam por aprender.

Num dos dias, em cima do monte de milho ceifado, quase a cair para o lado do tractor e a tornar-me um obituário típico do JN o M. pára a geringonça e cumprimenta um vizinho nativo. Este pergunta se sou português e fica negativamente surpreendido - aparentemente os wwoofers de países ricos fazem isto para fortalecer o carácter enquanto que o português, coitado, deve estar cá para comer um pouco de sopa. "Já vi como eles vivem, vocês são como os Ratinhos!". Ele já conhecia o colchão de rama de ervilha por trás da queijaria onde faço o ninho à noite debaixo da lâmpada mais coberta de traças que já vi. Podia ser do quotidiano mas a intermitência do voo dos insectos naquela pequena divisão provoca um enorme e bem-vindo estado de sonolência.

Ratinho por uns tempos [I]

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Quando cheguei à quinta dos Märkl (coitados, pronuncia-se "Merkel") a maior parte do meu entusiasmo com o WWOOFing tinha sido substituído pelo receio mais básico que aparece quando me apercebo de que estou numa área bastante remota e pouco povoada do país e que se desaparecesse nunca ninguém saberia onde ou com quem estava.

Sair sem ninguém saber para onde nem para o quê é provavelmente a estratégia errada para experiências uma vez que se tratava provavelmente do ponto da minha vida onde não via grandes razões para confiar noutras pessoas. Por isso, mudar-me durante umas semanas para uma quinta que se anunciava "orgulhosamente só" nos seus 90% (!?) de auto-suficiência parecia tudo menos a reacção mais óbvia ou recomendável.

Cinco minutos depois de chegar já sabia que não havia grande tempo para tretas deste tipo, "é Verão e trabalha-se 14 horas por dia", por isso no mesmo gesto que os cumprimentos passaram-me um estojo de facas para a mão, pousaram-me o saco na sala e fomos matar o cabrito que nos tinha acolhido aos saltitões de alegria momentos atrás. Nunca tinha morto realmente nada maior do que uma unha e procurei ter o máximo de sangue frio para a rapidez do processo mas é complicado emular a eficiência e impassividade do T., o filho do outro anfitrião e proprietário, o M., quando cravou um espigão na nuca "para anestesiar" e depois rapidamente me explicou como degolar o animal enquanto o segurava, ignorando o facto de eu estar ainda atónito com esta imersão repentina no ciclo de vida e de morte da quinta.

Ao ajudá-lo a preparar a carcaça para o entregar a um cliente no dia seguinte o T. informa-me que a reentrância de cimento no alpendre onde estávamos a enganchar o ex-carneiro, totalmente aberta para a paisagem, era também o único duche. Seria eu a limpá-lo nessa noite, ao tomar banho com a água aquecida a lenha, que depois carregaria e içaria para um bidão de gasolina vazio e furado por baixo, limpando assim o chão empapado de sangue. A parte difícil é na verdade segurar a lanterna de campismo com a boca para não estar às escuras, mas mesmo com os pés pastosos e cor-de-rosa estar ali exposto às estrelas é uma experiência de humildade e uma distracção muito bem vinda, uma vez que todos problemas se reduzem à mesma proporção que a fragilidade do corpo ao relento. E depois desaparecem por um momento.